A morte saíu à rua num dia assim. De repente, três grandes homens deste nosso Portugal deixaram de nos fazer companhia: o general Vasco Gonçalves, o poeta Eugénio de Andrade e Álvaro Cunhal. Muito haveria a dizer sobre cada um deles, mas queria neste post centrar-me na figura de Cunhal.
A notícia da sua morte deixou-me bastante abalado. Apesar de não ser "comunista" no sentido de "membro do Partido Comunista" (considerando no entanto, ao contrário do que dizia Estaline, haver de facto comunistas fora do partido, porventura até mais do que no seu interior...), senti, como creio que terá sentido qualquer homem ou mulher de esquerda, uma perda com o desaparecimento deste grande homem, responsável mais do que qualquer outro pela edificação de uma estrutura política organizada de forma tão competente que foi capaz de fazer frente, durante décadas, à tirania do fascismo salazarista. Se o fascismo foi derrubado, muito o devemos à sua luta, à sua resistência, à sua abnegação. O que não quer dizer que no essencial Cunhal não tenha estado do lado errado da história.
A morte é sempre algo de trágico e doloroso. Mas tem o seu quê de irónico. Quando morre um homem ou uma mulher, todas as delcarações a seu aspecto são elogiosas, mesmo vindas dos maiores inimigos. Por outro lado, quando a pessoa em causa foi uma personalidade maior e marcante, como é incontestavelmente o caso de Cunhal, a sua memória e figura são desde logo disputadas, canibalizadas, manipuladas. E isto dos mais diversos ângulos.
Assim, ontem os editorialistas e colunistas afinaram praticamente todos pelo mesmo diapasão: Cunhal foi um grande homem, um grande resistente anti-fascista, mas tinha um modelo de sociedade que daria necessariamente numa ditadura. Porque a única forma de sociedade viável é mesmo uma que se reja pela democracia parlamentear representativa e pela sociedade de mercado liberal. Morrendo um "comunista", há que enterrar com ele os ideiais emancipatórios do Comunismo. Fukuyama Reloaded
A outra postura foi a hagiográfica: a elevação do homem a uma figura mítica, algo que já há muito se vinha a fazer, mas que agora com a sua morte se fará ainda mais. A memória dos mortos é de que a apanhar. Se figuras carismáticas vivas dão força a um movimento político ou religioso, os mortos e os mártires dão muito mais. O PSD tem Sá-Carneiro, o PCP agora tem Álvaro Cunhal.
No meio de isto tudo, é muito difícil estabelecer o rigor histórico e fazer ouvir uma opinião diferente. Mas há que dizê-lo, Cunhal estava politicamente errado. Não por ser comunista, como o dizem os comentadores reaccionários e burgueses, mas por ser estalinista, por ter apoiado sempre a casta dirigente que usurpou o poder após a Revolução de Outubro, que aniquilou milhões de pessoas entre as quais a maioria dos quadros dirigentes responsáveis pela própria Revolução. Por ter apoiado as manobras imperialistas do Estado Soviético, o esmagamento militar da Primavera de Praga, a lei marcial na Polónia, a invasão do Afeganistão.
Ao contrário do que se diz, Cunhal soube dar as cambalhotas que foi preciso dar para parecer que esteve sempre no mesmo lugar. Cunhal manobrou quando foi preciso manobrar e denunciou quando achou tal necessário, condenando por divergências políticas camaradas de luta à prisão e à tortura por parte da PIDE, prisões e torturas essas que ele tão bem conhecia.
Acerca disto, revejo-me por completo nas palavras do grande e sempre lúcido
Francisco Martins Rodrigues ( no artigo publicado ontem no Público, e que por não estar disponível on-line passo a transcrever:
Um progressista de vistas curtas
No momento da morte de Álvaro Cunhal, não vou juntar-me às expressões de "profundo pesar" institucional que chovem de todos os lados, sobretudo dos seus adversários políticos. Muito menos às frases feitas sobre a sua dureza, ambição, modéstia ou imodéstia, etc. Acho que o peso da sua figura merece uma apreciação política séria.
Em primeiro lugar, não posso acompanhar os elogios das figuras gradas a este regime à "coerência" do falecido - elogios que apenas reflectem o desconforto perante um homem qye chefiou a longa resistência dos comunistas à ditadura fascista e que, só pela sua presença, lhes atirava à cara a vergonha de não terem feito o mesmo quando era preciso provar o amor à "democracia" que estão sempre a proclamar.
Apesar do seu valor como antifascista, coerência é justamente a qualidade mais problemática na carreira política de Álvaro Cunhal. Ele foi, como todos sabem, admirador fervoroso da grande revolução conduzida por Lenine, mas também das misérias que vieram depois, com Estaline, Krutchov, Brejnev... até ao miserável desabar da URSS. E nunca explicou o que o levara a julgar socialista um país onde os trabalhadores eram arregimentados.
Pior ainda a sua "coerência" na política interna: depois de ter apelado ao longo de décadas à "revolução", quando esta finalmente começou a desenhar-se passou a bradar contra os "actos irresponsáveis". Pode dizer-se com justiça que Álvaro Cunhal contribuiu para fazer abortar a revolução que se esboçava em 74/75 no miserável forrobodó que por aí vai. Os burgueses que o pintavam como um diabo vermelho bem lhe podem agradecer o favor que lhes fez.
Nesse caso, porque teimam mesmo assim em acusá-lo de que quis "tomar o poder"? Naturalmente, porque precisam de ter uma justificação para o infame golpe militar de 25 de Novembro. E sobretudo, porque, habituados a ver o movimento de massas como uma marioneta nas mãos dos políticos, confundem o avanço irreprimível dos trabalhadores com planos tenebrosos da cúpula do PCP - a qual, na realidade, apenas se limitou a seguir a reboque da onda popular.
Promovem-no agora também a "homem de cultura". Para além do mérito que tenha a sua produção literária e artística, acho difícil reconhecer valor cultural a um líder político que instituiu no seu partido o clima da ortodoxia, da aceitação obediente e do medo à crítica e que, pela extrema pobreza do seu pensamento político, formou toda uma escola de militantes convictos de que o marxismo é uma colectânea de fórmulas sagradas.
Álvaro Cunhal fica na história de Portugal não como revolucionário (que nunca foi) mas como um anti-imperialista e um progressista de vistas curtas, que conseguiu a proeza de, sem se desacreditar perante os trabalhadores, poupar à burguesia o calvário de uma revolução. Nestes últimos 30 anos, o prestígio da sua carreira de resistente antifascista já não era suficiente para apagar a falência de toda a sua política e os custos que acarretou para os explorados.
Toda a sua vida foi passada na busca de um meio-termo, capaz de acalmar a indignação dos pobres sem atemorizar as classes médias. Não é uma qualidade honrosa para quem se reivindicou do título de comunista.